domingo, 19 de agosto de 2012

Carta Desabafo Sobre Processo Transexualizador no SUS

Carta-desabafo sobre a reunião, organizada pelo Ministério da Saúde para discutir o processo transexualizador no Brasil, nos dias 4 e 5 de junho, em Brasília

Prezadas/os amigos/as e colegas, gostaria de compartilhar com vocês algumas impressões acerca da reunião que aconteceu nos dias 4 e 5 de junho em Brasília, organizada pelo Ministério da Saúde, intitulada Seminário: Processo transexualizador no SUS. Seu principal objetivo seria compartilhar experiências e discutir a reformulação da Portaria No. 457, de 19 de agosto de 2008, que estabelece diretrizes para o processo transexualizador.

Sem dúvida, um debate crucial tanto para as pessoas transexuais e travestis, quanto para profissionais de saúde e pesquisadoras/es nesse campo. Por essa razão, até o momento, não consigo compreender o porquê foi ?proibida? a participação de pesquisadores/as e ativistas nos trabalhos do dia 04, ficando a discussão restrita aos/às representantes dos serviços (Hospitais que fazem as cirurgias de transgenitalização e os ambulatórios voltados para atender às populações travesti e transexual). Pergunto: não deveriam ser os/as usuários/as do serviço os protagonistas principais em uma reunião cuja pauta era avaliar a qualidade do serviço? Nesse caso específico, as pessoas transexuais e travestis?

Ao longo de todo o dia 05 eu me perguntava: o que pretende realmente o estado brasileiro? Por que reunir tanta gente com tamanha experiência (e expectativa) sem ter construído uma dinâmica de debate que, de fato, garanta a participação de todos/as? Por que o estado nos convidou para contribuir com o debate sobre o processo transexualidador, enchendo uma sala com pesquisadores/as de todo Brasil e ativistas trans que se dedicam à luta pelos direitos humanos das pessoas trans há décadas, sem assegurar o espaço adequado para a deliberação democrática?

Éramos dezenas e muitos de nós imaginávamos que ali estávamos para reformular a Portaria 457. Contudo, ao longo das nossas intervenções nos demos conta de que já havia uma proposta de reformulação dessa Portaria. Quem a concebeu? Com quem foi debatida? Quem a havia recebido anteriormente? Tínhamos apenas um dia de discussão: das 9h00 às 13h00. Saímos para almoçar e voltamos às 15h00. Terminamos às 16h30. Saí de Brasília com muitas perguntas:

1.Por que os/as gestores/as do Ministério da Saúde não distribuíram antes (via email) a pré-proposta de reformulação da Portaria?
2.Por que não se desenhou uma dinâmica/metodologia que permitisse a participação efetiva de todos os presentes? Podia ser uma dinâmica simples. Por exemplo: pela manhã se faria uma divisão em grupos de trabalho e cada grupo ficaria responsável por discutir e sugerir alterações na Portaria. Durante a tarde, em plenária, faríamos os encaminhamentos. Fico com a impressão de estar ensinando a missa ao vigário. Não posso deixar de pensar que ao optar por um ?debate? exclusivamente em plenária os/as organizadores/as queriam evitar uma discussão mais aprofundada sobre o conteúdo da Portaria, assim como os encaminhamentos mais objetivos.

3. Por que parte dos profissionais envolvidos com o serviço de atendimento às pessoas trans se retiraram da plenária quando foi discutido o caráter patologizante da Portaria?

4.Por que não havia nenhum/a representante dos coletivos transexuais e travestis em nenhuma das mesas nos dois dias? E aqui vale uma ressalva: não estou desqualificando ou criticando as densas e importantíssimas reflexões de Guilherme Almeida, Tatiana Lionço e Anibal Guimarães, pois esses três pesquisadores/as-ativistas dispensam qualquer tipo de comentário sobre a seriedade dos seus trabalhos.
5.Por que a representante do Ministério da Saúde abusou do uso da palavra, de modo que restringiu a possibilidade de expressão das/os demais participante a palavra? Na reunião o tempo era o bem mais precioso, porém ela sempre extrapolou seu tempo quando teve o microfone em mãos, o que aconteceu inúmeras vezes. Na minha experiência de participação em fóruns chamados pelo estado, em geral, e corretamente, o gestor escuta mais e fala menos.

Ao longo de quase 20 anos como pesquisadora e ativista dos direitos humanos, sem dúvida, esse foi o encontro mais confuso e desorganizado de que participei. E, quando a desorganização é tamanha, é inevitável tecer dúvidas quanto às intenções que motivaram tal ?(des) organização?. E eu tenho muitas dúvidas. Não quero que meu nome seja usado para legitimar um suposto processo democrático de consulta sobre a reformulação da Portaria. Não tivemos uma discussão, de fato, na reunião de Brasília. Quero dar um único exemplo: afirmei, categoricamente, que nesse momento está em curso uma intensa discussão sobre a despotalogização no âmbito da própria OMS (Organização Mundial de Saúde), as quais possivelmente vão resultar na exclusão da transexualidade do capítulo V (letra F) no próximo CID (Código Internacional de Doenças), sendo transportado para uma seção denominada ?Cuidados à saúde das pessoas trans?. Eu também afirmei que se consideramos que a transexualidade e a travestilidade não são transtornos mentais, nada, ABSOLUTAMENTE NADA, justifica a permanência de psiquiatras nas equipes multidisciplinares.

Pois bem, em reação à minha fala, Mariluza Terra, do Hospital das Clínicas de Goiás, afirmou que a proposta da ?Berenice é muito interessante, mas não podemos esperar a reformulação do CID para atender aos homens trans?. Eu não disse que se tratava de esperar a reformulação do CID. O Brasil é um país autônomo e pode, unilateralmente, publicar uma Portaria nos termos que considerar pertinente. Ora, a França despatologizou a transexualidade muito antes de qualquer revisão do CID. Ou mais perto de nós, podemos citar a nova lei de identidade de gênero argentina que assegura direitos fundamentais às pessoas trans (transexuais e travestis). Com isso, o país passou a ter a legislação mais avançada do mundo. A lei argentina estabelece: 1) qualquer pessoa poderá solicitar a retificação de seu sexo no registro civil, incluindo o nome de batismo e a foto de identidade, 2) a mudança de sexo não necessitará mais do aval da justiça para reconhecimento, 3) o sistema de saúde deverá incluir operações e tratamentos para a adequação ao gênero escolhido, 4) a nova lei define identidade de gênero como a "vivência interna e individual tal como cada pessoa a sente, que pode corresponder ou não ao sexo determinado no momento do nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo", 5) Não condiciona as mudanças nos documentos à realização das cirurgias de transgenitalização.

Na confusão geral que havia tomado a reunião, não tive tempo de responder a questão levanta por Marizula Terra, mas estou convencida de que o argumento desenvolvido por ela conduz a um raciocínio danoso: vamos publicar a Portaria nos atuais termos patologizantes. Incluímos os homens trans e depois vamos ver o que faremos. Esta estrutura argumentativa, que pode ser interpretada como patologização negociada, tem sido amplamente utilizada para sistematicamente reiterar o caráter de transtorno mental das experiências trans. Mas a patologização não dá nada, só retira. A patologização não empodera as pessoas trans, mas as silencia. Como um/a doente mental pode falar de si mesmo? Concordo com a proposta que construímos na reunião que aconteceu em Haia (Holanda) em novembro de 2011. Durante três dias, 18 especialistas e ativistas trans de vários países discutiram a reforma do CID. Esse evento, organizado pelo GATE (Global Action for Trans Equality), foi financiado pelo Ministério da Educação da Holanda. O relatório final foi enviado ao grupo de trabalho do CID responsável pelo capítulo V (letra F): Transtornos Mentais e Comportamentais. Defendemos que o foco deva ser no cuidado à saúde das pessoas trans. Portanto, os procedimentos singulares às transformações corporais devem ser no incluídos, no próximo CID, no capítulo XXI (letra Z): Fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde com o subtítulo: CUIDADOS À SAÚDE DAS PESSOAS TRANS, sem nenhuma referência às questões identitárias.

Este é apenas um exemplo dos feitos nefastos da falta de tempo e das confusões que aconteceram no dia 05 de junho. Imagino que, com razão, depois de ouvir os esclarecimentos de Mariluza Terra muitas pessoas trans, que esperam há anos para serem atendidas, devem ter concluído: é melhor mesmo preservar a lógica de transtorno mental, caso contrário vai demorar muito mais para eu ter minha cirurgia.

Ao longo de minha vida aprendi uma coisa muito simples com o feminismo; a visibilidade nos protege. E como esta visibilidade acontece nas vivências trans? Se me negam a palavra, eu faço barraco. É o bafão! Gostei muito do bafão da Fernanda Benvenutty. Suas palavras brotavam do útero. Seu grito: quem sou eu? Uma doente mental? Então, eu posso pedir aposentadoria porque sou uma incapaz? Quem pode falar por mim? Eu sou uma travesti? Sou uma transexual? O que isso importa?

Aqui, o barraco é resignificado como mecanismo de sobrevivência. Trata-se de uma epistemologia singular daqueles que se negam a morrer. Precisamos de mais gente adepta à epistemologia/práxis do barraco. Já passou da hora das equipes biomédicas e o estado entenderem que os seus/suas pacientes são sujeitos. Esse deve ser o princípio orientador da Portaria e de todas as políticas públicas voltadas para a população trans.

Não queremos caridade. Chega de vida precária! Queremos o reconhecimento pleno da existência plural de experiências/expressões de gênero. Sem tutela. Sem psiquiatras.

Berenice Bento
Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar Tirésias/UFR

Nenhum comentário:

Postar um comentário